17 junho 2009

Testemunho: arquitectura

Terminei licenciatura em arquitectura em 1999 e comecei a trabalhar como arquitecta estagiária, nesse mesmo ano, ganhando a mísera quantia de 70 contos/mês. Apesar de tudo, sempre era melhor que a maioria dos actuais estagiários que hoje em dia não recebem nem um tostão, e que na minha opinião é em parte culpa da ordem que supostamente nos deveria proteger, a partir do momento em que impôs dois anos de estágio para ingressar na mesma.

A partir de 2001 passei a ganhar um valor por hora de 6euros, recibo verde na mesma, mantendo cartão de ponto, mapa de horas mensais, horário completo e local de trabalho fixo. Mantive essa situação absurda até 2004, altura em que a sociedade se desfez e passou apenas a L**o Fon**ca Arq. Lda, mantendo o mesmo estatuto de recibo verde e nas mesmas condições atrás descritas, passando agora a ganhar 6,5 euros/hora.

Passados estes anos todos, tenho obviamente uma dívida na segurança social brutal, pois apenas em alguns meses me foi possivel pagar o valor exorbitante que era suposto. Precisamente por isso, por essa divida, em final de 2007 aceitei entrar num esquema, como muitos arquitectos por esse país fora o fazem, que consistia em assinar alvará de uma empresa de construção, "Fami**v", a qual me descontava pelos 14 salários mínimos a segurança social.

Perguntam porque aceitei??? Era a única forma de me isentar dos valores absurdos de contribuição para a segurança social que exigem a um falso trabalhador independente, e de colmatar a cobardia do patrão que nunca assumiu um contracto de trabalho. Para isso todos os meses assinava em como tinha recebido o salário mínimo nacional, e na realidade apenas me pagavam 75 euros/mês, a situação em si já é caricata, mas nem esses 75euros/mês me foram pagos na integra.

Não obstante todas as situações atrás descritas, em Janeiro de 2009, a referida empresa apresentou uma nova proposta, continuaria a fazer os descontos sobre o salário mínimo, isentando-me das contribuições como independente, e eu continuaria a assinar os recibos nesse valor, mas agora a proposta era que não me pagariam nada. Conclusão, revoltei-me e mandei a malta aquele sítio que não é preciso referir com certeza.

Com isso fui obrigada a encerrar a minha actividade como independente, tendo em consideração que novamente teria que recomeçar a pagar de contribuções a segurança social só no valor de 150euros mensais, quer tenha rendimentos quer não tenha.
Para isso acordei com a empresa onde trabalho a tempo inteiro em Janeiro deste ano que deixaria de poder passar recibos, e mais uma vez acabei por ter que me sujeitar a este tipo de esquema, que em nada me agradou.

Em Maio, a empresa em questão, decidiu mudar a sua sede do Porto para Espinho, desta vez com promessa de revisão da minha situação contractual, possibilidade de um contrato de trabalho, regularizando a minha situação. Ora bem estamos em Junho e neste momento nem contrato de trabalho, nem salário, estando em divida dois meses.

Após 10 anos de trabalho, estou sujeita a ficar sem fonte de rendimento, sem receber 1600euros em atraso, sem direitos a absolutamente nada em relação a subsídio de desemprego, nada de nada... e embora tenha uma dívida com a segurança social, na minha opinião mais que justificada, sempre cumpri com tudo o resto, IVA, IRS, que no caso de trabalhadores independentes é uma boa fatia do ordenado, e neste momento não sei que direitos me podem assistir... se é que existem alguns...

Sei que sou mais um número no meio daquilo que é a precariedade em Portugal, mas gostaria de saber se existe alguma coisa que possa fazer??? Além da revolta que sinto é acima de tudo perceber que como eu existem milhares por esse país fora e sinceramente estou realmente farta de nunca ter sentido um pouco de estabilidade, e não saber por exemplo o que é poder constituir familia, ser mãe, poder receber 14 salários em vez de 11, sentir que de alguma forma os meus descontos servem para ter direitos, porque até aqui foram sempre obrigações e mais obrigações e disso estou realmente farta e cansada de lutar.

Desabafo de uma precária...

12 comentários:

Isa disse...

Apesar de eu ser de outra área, como eu te compreendo...
Digo-te que estou na mesma situação que tu, com os mesmos contornos e, curiosamente, na mesma faixa etária (a avaliar pela data que indicas do estágio).
É preciso coragem e não esmorecer, mesmo com esse cenário (que também é o meu)! :o)

Isa

lu disse...

Isa, obrigado pelas palavras de incentivo. Realmente somos muitos nesta situação e espero que consigamos sair desta precariedade...

Lu

Anónimo disse...

Infelizmente nessa área é o "normal" conhece dezenas de pessoas nessa área e apenas 2 ou 3 têm contratos e nenhum supera os 1.000€ mês.
Coisa que para um licenciado com 6 ou 7 anos de experiência é no mínimo absurdo!
Os que sobram das dezenas menos 2 ou 3, recebem a recibos verdes valores absurdos desde 200€ mês até uns 750€ mês, já se sabendo que 20% vão para a retenção e 155€ para a SS.
Boa sorte!

Ex-arquitecto disse...

Cara colega,

A minha maior solidariedade. Após 2 anos na mesmissima situação e depois de constatar que os colegas de curso mais velhos se mantinham na mesma situação indefinidamente cheguei a uma conclusão: ou saía da Arquitectura ou do país.

Escolhi a primeira, por conformismo inicialmente mas sem qualquer arrependimento após um mês de contrato "real".

Não ganho mais dinheiro mas preciso do mínimo de segurança (saber onde posso estar daqui a 6 meses) para que possa constituir família e ter um lar que não provisório.

lu disse...

Ao ex arquitecto!
Caro colega, compreendo porque desistiu da carreira. Cheguei precisamente a mesma conclusão, neste momento e após 10 anos a tentar sobreviver a recibos verdes na área onde me formei, desisti de exercer. Já cancelei inscrição na ordem e estou já pensando em áreas alternativas que me dêem alguma segurança. Força na sua nova profissão e penso que fez a escolha pelo melhor.

Lu

Cristina Ruivo disse...

Esta semana também eu fui "dispensada" de um atelier de arquitectura onde "colaborava" há já algum tempo. A forma como fui "despedida" foi estupidamente bizarra, desumana Comunicaram-me esta decisão de um dia para o outro, tendo-me deixado numa situação financeira bastante delicada (apesar de o que ganhava ali ser escadalosamente vergonhoso e de continuar ainda a ter que precisar da ajuda dos meus pais para conseguir pagar casa, contas, tudo). Já tinha assistido anteriormente, num outro atelier em que trabalhei, a situações idênticas que me punham já a ferver. Desta vez fervi definitivamente e penso agora abandonar arquitectura. Nestes moldes não trabalho mais. Portanto aos ex-arquitectos um grande abraço de solidariedade, de força. Espero que encontremos todos um caminho bem mais estável, bem mais seguro e bem mais feliz.

lu disse...

Cara colega!
Compreendo a sua situação, mais um despedimento de um dia para o outro, sem ter direito a absolutamente nada. Espero que encontre solução para o seu problema, seja ele recorrer a outra área de trabalho, seja conseguir melhores condições na nossa. Força e continuamos a lutar...

Lu

lu disse...

Cara colega!
Compreendo a sua situação, mais um despedimento de um dia para o outro, sem ter direito a absolutamente nada. Espero que encontre solução para o seu problema, seja ele recorrer a outra área de trabalho, seja conseguir melhores condições na nossa. Força e continuamos a lutar...

Lu

Cristina Ruivo disse...

Força ;)

a besta bestial disse...

Será que a solução passa por todos desistirem das suas profissões?

ass: uma (ainda) jornalista

lu disse...

Desistir da procura de emprego na respectiva área de formação, não será com certeza a solução para todas as profissões, mas no que toca a arquitectura e áreas a fins relacionadas com a construção civil, na minha opinião, é uma das vias mais prováveis, a desistência. Desde os anos 80 que se constrói em Portugal de uma forma desmedida, e se neste momento não se avançar a sério para a reconstrução e reabilitação dos centros urbanos, realmente a nossa área estará condenada à partida...

Anónimo disse...

Ola

Eu gostava de alertar, relativamente a este testemunho, de uma coisa muito importante...as constribuições absurdas que os prestadores de serviços pagam à Segurança Social e os outros impostos...depois com mais tempo irei escrever o meu testemunho neste blog...mas qual é a lógica de os prestadores de serviços pagarem 155€ por mês de Segurança Social (ganhem muito ou pouco dinheiro) e de os trabalhadores a contrato pagarem 50€? Esse é um aspecto totalmente inconcebivel e não percebo como se mantém até hoje. Peço aos "gestores" do blog que dediquem, se possivel, alguma atenção a este aspecto...no meu caso, estive a trabalhar a recibos verdes, com um ordenado mísero e com os descontos que fiz para a Segurança Social, IVA, IRS...cheguei à conclusao de k tive prejuizo...estou absolutamente chocada...mas um dia contarei melhor a minha história, ainda está a decorrer....

Cristina